terça-feira, 20 de setembro de 2011

POESIA E POETAS MÌSTICOS

Poesia mística

 O poema é uma expressão estética que as vezes vislumbra a existência de outra realidade. A mística entra em cheio na experiência transcendente. Desta fusão entre arte e misticismo nasce a poesia mística, que esbanja beleza, amor e verdade. H2H Latino compartilha com vocês as obras dos autores mais destacados de todos os tempos.




Segundo Camilo Valverde Mudarra, Licenciado em Filosofia e Letras e em Filologia Românica, a poesia “se move na função estética; assim também, a mística procura a transmissão da beleza do amor divino; persegue manifestar a encantadora vivência da viva união da alma com a Divindade”. Entretanto, não é certo que todo poeta que se aprecie intui essa outra realidade? “Certamente, ambos os níveis se encontram em toda composição poética”, esclarece o Lic. Valverde. “Mas na mística incidem de um modo especial no realce da expressão poética com uma fundura significativa que sempre diz algo mais”.
Este “algo mais” é a experiência transcendente. No poeta é intuição; no místico, certeza. E a ponte para expressá-la, a beleza.

“Espreite-se” com poemas

No livro “O Conhecimento Silencioso”, Carlos Castaneda relata como Don Juan, seu mestre:
Reconheceu que os poetas estavam profundamente afetados pelo vínculo com o espírito, mas que se davam conta disso de maneira intuitiva e não de maneira deliberada e pragmática como o fazem os bruxos (sábios de México, N. da r.): Explicou que os poetas, sem sabê-lo, anelam o mundo dos bruxos (místicos, sábios). Como não são bruxos, nem estão no caminho do conhecimento, a única coisa que lhes resta é o desejo:

-Vejamos se podes sentir o que te estou dizendo -disse entregando-me um livro de poemas de José Gorostiza.
O abri onde estava marcado e ele me sinalizou o poema que gostava.
-Ao ouvir o poema -disse Dom Juan quando terminei de ler-, sinto que esse homem está vendo a essência das coisas e eu vejo com ele. Não me interessa de que trata o poema. Só me interessam os sentimentos que o desejo do poeta me trazem. Sinto seu anelo e o tomo emprestado a beleza. E me maravilho ante o fato de que o poeta, como um verdadeiro guerreiro, com esbanjamento nos que a recebem, nos que a apreciam, retendo para si tão somente seu anelo. Essa sacudida, esse impacto da beleza, é a espreita.
 O conhecimento silencioso, CC, p.41


Embora se citem vários poemas na extensa obra de Carlos Castaneda, somente um, que além disso é anônimo, parece representar o mito que ele encarna:

Já me dei ao poder que a meu destino rege.
Não me agarro já de nada, para assim não ter nada que defender.
No tenho pensamentos, para assim poder ver.
Não temo já a nada, para assim poder lembrar-me de mim.


Sereno e desprendido,
me deixará a Águia passar à liberdade.


O Dom da Águia, C.C, p. 102


POETAS MÍSTICOS
O poeta místico vai um passo além do anseio ou a intuição dos poetas literários. Presente em todas as tradições espirituais, é alguém de vivências transcendentes, e se vale da poesia para que sua experiência não morra em seu mundo interior. Seus poemas nos inspiram com sua beleza, e agem como pegadas certeiras para poder entrar na experiência suprema. Desta maneira, o poeta místico nos diz: “esta é minha vivência, podem inspirar-se com ela”.


SANTA TERESA DE ÁVILA
(1515-1582)
Nada te perturbe


Nada te perturbe,
Nada te espante,
Tudo passa,
Deus não muda.
A paciência,
Tudo consegue.
Quem a Deus tem,
Nada lhe falta,
Só Deus é suficiente.

Eleva o Pensamento ao céu sobe
Por nada te angustie Nada te perturbe
A Jesus Cristo segue de coração entregue
E venha o que vier Nada te Espante

Vês a gloria do mundo?  E gloria vã
Nada tem de estável Tudo passa
Aspira as coisas celestes que sempre duram
Fiel e rico em promessas Deus não muda

Ama-O Como merece Bondade imensa
Mas não há verdadeiro amor sem a paciência
Confiança e fé viva mantenha a alma,
Que quem crê e espera Tudo alcança

Do Inferno acossado Muito embora se veja
Burlara os seus furores Quem a Deus Tem
Advenham-lhe desamparos, Cruzes, desgraças
Sendo Deus o seu tesouro Nada lhe falta

Ide pois bens do mundo Ide, ditas vãs
Ainda que tudo perca, Só Deus Basta.


Santa Teresa de Jesus, chamada também Santa Teresa de Ávila, tem sido uma das grandes místicas da história universal e provavelmente a melhor poetisa do misticismo cristão. Fundadora das carmelitas descalças, ramificação da Ordem de Nossa Senhora do Monte Carmelo (ou carmelitas), nasceu na província hispânica de Ávila em 28 de março de 1515. Aos dezoito anos entrou no Convento. Aos quarenta e cinco fundou o convento de São José de Ávila, primeiro dos quinze Carmelos que estabelecerá na Espanha. Com São João da Cruz, introduziu a grande reforma carmelitana. Seus escritos são um modelo seguro nos caminhos da oração e da perfeição. Morreu em Alba de Tormes, ao anoitecer de 4 de outubro de 1582. Pablo VI a declarou doutora da Igreja em 27 de setembro de 1970. 

SÃO JOÃO DA CRUZ
(1542-1591)
Quadras feitas sobre um êxtase de farta contemplação.

Entrei-me aonde não soube
e quedei-me não sabendo,
toda ciência transcendendo.

Eu não sabia onde entrava,
porém, quando ali me vi,
sem saber aonde entrava,
grandes coisas entendi:
não direi o que senti,
que mo quedei não sabendo,
toda ciência transcendendo.

De paz e de piedade
era a ciência perfeita,
em profunda solidão,
entendida a via reta:
era coisa tão secreta,
a fala subvertendo,
toda ciência transcendendo.

Estava tão embebido,
tão absorto e tão alheado,
que se quedou meu sentido
de todo o sentir privado:
e o espírito dotado
de entender não entendendo,
toda ciência transcendendo.

Que ali chega verdadeiro
de si mesmo desfalece:
quanto sabia primeiro
muito baixo lhe parece:
sua ciência tanto cresce
que se queda não sabendo
toda ciência transcendendo.

Quanto mais alto se ascende,
tanto menos entendia
que negra nuvem se acende
que as trevas esclarecia:
por isso quem a sabia
queda sempre não sabendo
toda ciência transcendendo.

Este saber não sabendo
é de tão alto poder,
que os mais sábios revolvendo
jamais o podem vencer:
pois não chega o seu saber
a no' entender entendendo,
toda ciência transcendendo.

E é de tão alta excelência
este mais sumo saber
que faculdade ou ciência
não há para o compreender:
quem a si souber vencer
com um não saber sabendo,
irá sempre transcendendo.

E, se quiserdes ouvir,
consiste a suma ciência
em num subido sentir
da só divinal Essência:
obra é de sua clemência
o quedar não entendendo,
toda ciência transcendendo.

São João da Cruz nasceu na província de Ávila (Espanha) em 1542. Passados alguns anos na Ordem dos carmelitas, a partir de 1568 foi -a instâncias de santa Teresa de Ávila- o primeiro que se declarou a favor de sua reforma, por meio da qual suportou inumeráveis sofrimentos e trabalhos. Morreu em Úbeda no ano 1591, com grande fama de santidade e sabedoria, das que dão testemunho precioso seus escritos espirituais.

JALAL UD-DIN RUMI
(1207-1273)


Quem faz essas mudanças?
Disparo uma flecha à direita
Cai à esquerda.
Cavalgo atrás de um veado e me encontro
perseguido por um porco.
Conspiro para conseguir o que quero
e termino na prisão.
Cavo fossas para apanhar os outros
e me caio nelas.
Devo suspeitar
do que quero.
Toma a um que não leva suas contas
Que não quer ser rico, nem tem medo a perder
Que não tem interesse algum em sua personalidade: é livre.
Lá fora, além de idéias de bem ou mal, há um lugar
Nos vemos lá.
Quando a alma jaz sobre a erva
O mundo está demasiado cheio para falar dele
As idéias, a linguagem, inclusive a frase 'cada um'
não tem sentido.
Se pudesses liberar-te, por uma vez, de ti mesmo,
o segredo dos segredos se abririam a ti.
O rosto do desconhecido, oculto além do universo,
apareceria no espelho de tua percepção.

Em realidade, tua alma e a minha são o mesmo.
Aparecemos e desaparecemos o um com o outro.
Este e o verdadeiro significado de nossas relações.

Entre nós, já não há nem tu nem eu.
O vale é diferente, por cima de religiões e cultos.
Aqui, em silêncio, baixa a cabeça.
Funde-te na maravilha de Deus.

Aqui não há lugar para religiões nem cultos.
Há uma Alma dentro de tua Alma. Busca essa Alma.
Há uma jóia na montanha do corpo. Busca a mina desta jóia.
Oh, sufi, que estás de passagem!
Busca dentro, se puderes, e não fora.

No amor, não há alto nem baixo,
má conduta nem boa,
nem dirigente, nem seguidor, nem devoto,
só há indiferença, tolerância e entrega.

Jalal ud-Din Rumi
(1207-1273) é o maior dos poetas místicos islâmicos. Nasceu no atual Afeganistão, passou por Irã e viveu e morreu em Konia, Turquia. Era um erudito professor de teologia, esforçado em seus exercícios espirituais. Sua vida mudou quando se encontrou com a figura misteriosa e fascinante do monge errante Shams de Tabriz. Como se diz na tradição sufí, foi «um encontro entre dois oceanos». Esse mestre misterioso iniciou a Rumi na experiência mística do amor, e em sua companhia faz realidade a verdade de seu ser. Seu agradecimento foi tão grande que lhe dedicou todo um livro de 3.239 versos, o Divan de Shams de Tabriz.   


EMILY DICKINSON
(1830-1886)


Não sou ninguém. Quem é você?
Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém — Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste — ser — Alguém!
Que pública — a Fama —
Dizer seu nome — como a Rã —
Para as palmas da Lama!


Colóquio
Morri pela beleza, mas apenas
No túmulo me havia acomodado,
Quando alguém que morreu pela verdade
Foi junto à minha tumba colocado.
"Por que morreste?" – perguntou-me logo.
"Pela beleza" – respondi-lhe então.
E ele falou: "Morri pela verdade;
Uma equivale à outra; és meu irmão".
E através das paredes conversamos,
Quais parentes que há muito não se vissem,
Até que o limo nos cobrisse os lábios,
Até que nossos nomes se extinguissem.




Emily Dickinson nasceu em Massachusetts, Estados Unidos, em 1830. Filha e neta de proeminentes figuras políticas e intelectuais,foi educada em um ambiente puritano que a tornou uma pessoa solitária e nostálgica. Durante sua vida rara vez saiu de casa e suas amizades foram escassas. Entretanto, entre as poucas pessoas que freqüentou teve especial apreço pelo Reverendo Charles Wadsworth,  quem teve um grande impacto sobre seus pensamentos e poesia. Admirou também os poetas Robert e Elizabeth Barrett  Browning, assim como a John Keats. Ainda que sua produção poética foi muito ampla, só foi editada em 1890 depois de sua morte, ocorrida em 1886 na cidade de Amherst. 




WALT WHITMAN
(1819-1892)


Canto a mim mesmo


34. Para mim, uma fibra de erva não vale menos que a
tarefa diurna das estrelas,
e igualmente perfeita é a formiga, e assim um grão de
areia e o ovo do reizete,
e a rã arbórea é na obra mestra, digna de
egrégias pessoas,
e a mora pudesse adornar os aposentos do céu,
e em minha mão a articulação mais miúda faz chacota
de todas as máquinas,
e a vaca, ruminando com inclinado cangote, é mais bela
que qualquer escultura;
e um rato é milagre capaz de assombrar a milhões de
infiéis.


45. Olha tão longe como puderes, há
espaço ilimitado lá,
conta tantas horas como puderes, há
tempo ilimitado antes e depois.
Meu encontro já foi concertado e é
seguro,
Ali estará o Senhor, esperando que eu
chegue em perfeitas condições
ali estará o grande Camarada, o amante
verdadeiro que tenho desejado.


Walt Whitman (Nova York, 31 de maio de 1819 – Nova Jersey, 26 de março de 1892), foi poeta, ensaísta, jornalista e humanista estadunidense. Seu trabalho se inscreve na transição entre o Transcendentalismo e o Realismo, incorporando ambos os movimentos a sua obra. Whitman está entre os mais influentes escritores do canon norte-americano (do que tem sido considerado seu centro) e tem sido chamado o pai do verso livre.

RABINDRANATH TAGORE
(1861-1941)
Néscio, que tentas levar-te sobre teus próprios ombros! Mendicante, que vens a pedir a tua própria porta!
Deixa todas as cargas nas mãos dAquele que pode com tudo, e nunca mira atrás nostálgico.
Teu desejo apaga ao ponto a lâmpada que toca com seu alento. Não tomes suas dádivas insalubres com mãos impuras! Recolhe só o que te oferece o amor sagrado!
Gitanjali, verso 9.

Meus desejos são infinitos, lastimosos meus clamores; mas tu me salvas sempre com tua dura negativa. E esta reta mercê transpassou de parte a parte minha vida.
Dia após dia me fazes digno dos dons grandes e simples que me deste sem eu os pedir-te, o céu e a luz, meu corpo, minha vida e meu entendimento; e me tens salvo, dia após dia, do escolho dos desejos violentos.
As vezes me retardo lânguido, as vezes me desperto e me desvivo em busca de meu fim; mas tu, cruel, te escondes de mim.
Dia após dia, a força de re usar-me, de livrar-me dos perigos do desejo débil e vago, me estás fazendo digno de ser teu de todo.
Gitanjali, verso 14

Rabindranath Tagore (1861-1941). Poeta, filósofo e pintor indiano nascido em Calcutá em 1861. Filho de um líder Brahmo Samaj, foi o menor de quatorze irmãos. Recebeu a educação básica em casa onde existiu um grande ambiente intelectual. Aos dezessete anos foi enviado à Inglaterra para completar sua educação. Entretanto, interrompeu os estudos quando assistia a University College de Londres e regressou a seu país para se matricular na escola experimental em Shantiniketan. A primeira parte de sua obra está contida em "Carta de um viageiro na Europa" 1881, "Cações do entardecer" 1882 e "O despertar da fonte" 1882. Depois de seu matrimônio em 1883, continuou sua longa carreira literária, destacando-se especialmente como poeta, com obras como "Gitanjali" 1912, "O Jardineiro" 1913, "Lua Crescente" 1913, "Punashcha" 1932, "Shes Saptak" 1935, e "Patraput" 1936. Em 1912 regressou a Londres, em 1913 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura e em 1915 foi nomeado  Cavaleiro pelo Rei Jorge V. Faleceu em 7 de agosto de 1941.    

VERSOS DE LIBERDADE
Ainda que não entrem na categoria de poetas místicos, os mestres liberados ou encarnações divinas utilizam os versos para expressar sua verdadeira natureza e inspirar-nos a realizá-la. Como o que Sathya Sai Baba pronunciou aos catorze anos, quando deixou sua família para anunciar Sua missão:


Saibam que em realidade sou Sai
Desprendam-se de suas relações mundanas
Abandonem seus esforços por restringir-me
Os apegos mundanos já não me atam.


Ninguém, por maior que seja
pode abarcar-me.

A mesma transcendência aparece expressada nos versos do famoso Nirvana Shatikam Stotram de Sri Sankara, nascido no ano 788. Assim como Jesus Cristo, Sankara viveu até os 33 anos e nesse curto período se dedicou a restabelecer os Vedas, escrituras fundacionais do hinduísmo. Fundou quatro grandes ashrams nos quatro pontos cardinais da Índia para reviver a espiritualidade de sua terra e refundar a filosofia do Advaita (a não dualidade), que resumia em seu último verso:


Não tenho forma ou imagem
sou o que tudo permeia
Eu existo em todos os lugares
e ainda
estou além dos sentidos.
Não sou a salvação, nem nada que se possa conceber.


Sou Bem aventurança e Consciência Eternas
Eu sou Shiva! Eu sou Shiva! 


http://www.h2hlatino.org/articulos.php?id=194

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